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23 de maio de 2012

Resenha do livro The Mysterious Skin

 
Título da fonte: Mysterious Skin   
Autor: Scott Heim
Editora: Harper - Perennial   
Edição:
Ano: 1995
Gênero: Literatura - Ficção
Páginas: 292 



 

Contrastes convergentes

por Beatriz Bevilacqua
 
O livro Mysterious Skin, do estadunidense Scott Heim, não pode ser classificado como uma leitura leve. É uma grande reflexão a respeito de diversas questões humanas apresentada sob a ótica de múltiplos personagens cujas trajetórias correm em linhas que, por um momento, julga-se serem totalmente paralelas, até que, algumas páginas depois, se cruzam de maneira irreversível. A temática densa e erótica é inserida em um contexto aparentemente pacato, no interior do Kansas. Cada capítulo é narrado por um personagem, o que leva o leitor a cruzar referências, constantemente, para que possa entender o que está acontecendo.
Brian Lackey vive com seus pais e a irmã em Little River, Kansas. Em seu oitavo ano de vida, encontra-se no sótão de sua casa. Ele não se lembra do que aconteceu nas últimas horas e não sabe como chegou até ali. Os anos passam e ele continua tentando descobrir o que havia de errado com ele, porque aquelas horas desapareceram. Mais tarde, atribui seu esquecimento à uma abdução e se torna obcecado por OVNIs. O casamento de seus pais é turbulento assim como a relação de Brian com o pai, que, entre outras coisas, não se conforma com o fato de Brian ter largado o time de beisebol infantil.
Neil McCormick vive com sua mãe em Hutchinson, Kansas. Descobre sua sexualidade muito cedo e é molestado pelo técnico de seu time de beisebol na infância, fato que define o curso de sua vida. Durante a adolescência adquire um comportamento inconsequente, confiando apenas em sua melhor amiga, Wendy. Começa a trabalhar como gigolô e muda-se para Nova York. Neil não parece ter um objetivo para o futuro e permanece apegado às lembranças que tem de seu técnico.
Como dois personagens tão diferentes podem ser essenciais para solucionar o mistério que assola Brian? Apesar de viverem em cidades parecidas, a estrutura familiar dos dois é distinta. O temperamento dos dois é contrastante: Brian é tímido, calmo, de índole afável. Apesar de estar sempre em intenso exercício mental, ele passa a impressão de ser um menino bonzinho e sem sal. Neil é quase selvagem. Pensa em sexo o tempo todo e deixa isso bem claro. Faz o que tem vontade, ignora convenções sociais e age de forma nociva aos outros e a si mesmo. É considerado uma aberração por ser gay e reage ao bullying que sofre na escola com agressões físicas. Entende-se como ambos enxergam o mundo e é fascinante como essas visões se complementam.
O autor morou em diversas cidades do estado do Kansas, nos Estados Unidos. Graças a isso, as descrições do cenário no qual se desenvolve a trama são riquíssimas. A natureza é bastante presente e pode-se visualizá-la, sentir seu cheiro mudando com as estações. As metáforas e comparações são inesperadas e originais, seu lirismo é, por vezes, um respiro, quando a trama adquire um peso a ponto de causar angústia; mas também serve para atrelar o leitor a esse peso e fazê-lo mergulhar na profundidade dos traumas e vivências dos personagens.
Mysterious Skin é uma leitura envolvente a ponto de causar desconforto físico. A narrativa é bem amarrada e ritmada; é um daqueles livros difíceis de largar. Quando finalmente se consegue fechá-lo, a mente continua inquieta, procurando respostas, tentando enxergar uma verdade única, levemente turva quando vista através do prisma das diversas exposições dos fatos, oferecidas pelos personagem.  Cabe ao leitor que sentir dificuldades em se desvincular da história assistir a adaptação para o cinema do romance por Gregg Arakaki, torcendo para que este consiga captar as mesmas nuances sombrias da história e transpor a riqueza de imagens que Heim cria com as palavras para a tela.


7 de maio de 2012

Notas de Leitura do conto "As Babas do Diabo", de Julio Cortázar

por Hugo Otávio Cruz Reis

1|Dados indicativos

 
Título da fonte: “As babas do diabo”. 
In: As armas secretas.
Autor:  Julio Cortázar
Editora: José Olympio
Edição, ano: 3ª ed. 2001
Páginas: 168


2|Dados informativos


Resumo:
Num dia de domingo, Michel, fotógrafo amador franco-chinelo, desce as escadas de sua moradia para ir ao encontro de uma cena, uma cena singular em meio ao temporal de outras tantas. E ela não demora a acontecer. Sentado em um parapeito, o fotógrafo vê diante de seus olhos a cena esperada se compor, gradativamente, na pessoa de um colegial e uma jovem moça enamorados. É então que, com um clique, Michel capta mais cenas do que poderia realmente processar.

Dados biográficos do autor:
Julio Cortázar (1914-1984) nasceu em Bruxelas, mas passou boa parte da sua vida em Buenos Aires, de onde só se mudou após Perón assumir o governo argentino. Ao deixar o pais, em 1951, Cortázar passou a viver na França, onde trabalhou como tradutor independente da UNESCO e pôde se dedicar ao aperfeiçoamento de sua escrita, desenvolvendo especialmente sua habilidade como contista.
A vasta experiência literária do autor marcou a Literatura Argentina e reconfigurou a literatura latino-americana a partir do denominado “Realismo fantástico”, fenômeno que promoveu o boom da Literatura Latino-Americana em 1970, com autores  como José Lezama Lima,Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa.

Recursos do estilo criado pelo autor:
Sobressaem-se na narrativa de Cortázar uma melancolia poética, que adorna as passagens do texto com uma maturidade reverenciável, e uma agilidade infatigável, desenvolvida para simular a velocidade das conexões entre os fatos e hipóteses estabelecidos pelo narrador.
Cortázar, assim, desenvolve seu conto a partir de uma narrativa multi-discursiva. Tal propriedade é devida tanto pela alternância recorrente entre passado e presente como também pelo revezamento das vozes do texto (primeira, segunda e terceira pessoas), o que acaba por legitimar a hesitação inicial do “narrador-escritor”, indeciso sobre qual voz narrativa acatar.
Nessa história impetuosa, o leitor é tomado de assalto pela ocasional interferência de ruídos do exterior no espectro interno do conto, como, por exemplo, a passagem de uma ave ou a aparição de uma nuvem. A disposição de tais elementos no texto são caracterizados tanto por uma dimensão simbólica, de acordo com a qual cada signo tem um correspondente significado a ser decifrado com o decorrer da leitura, assim como uma dimensão referêncial, aludindo à posição do leitor em relação ao texto e à simultaneidade dos acontecimentos presentes com os passados, que se encontram na plataforma da narrativa.

Observações sobre procedimentos de elaboração da linguagem da obra:
O narrador criado por Cortázar nos é apresentado como um ser movido por uma vontade, um desejo dilacerante, porém obscuro, de relatar um determinado acontecimento, com o intuito de não deixá-lo se perder entre outros fatos empoeirados pelo tempo. A partir desse impulso, o relato se desenvolverá num viés bastante imagético, no qual a linguagem é trabalhada para apresentar-se ao leitor de um modo quase tangível, devido ao enfoque poético-imagético das cenas apresentadas.
Na sequência, enquanto os procedimentos de elaboração da linguagem tendem a capturar os pensamentos instantâneos que transpassam a mente do narrador, o narrador é tomado de assalto por formulações metalinguísticas que o conduzem a refletir sobre o ato de contar uma história, isto é, sobre a essência da narratividade. Nesse sentido, há uma exploração das limitações da escrita em primeira pessoa ao tecer grandes panos de conjecturas sobre as cenas que enxerga e pensamentos que transitam em sua mente.

Citações ou partes exemplares mais importante:
Mas de bobo tenho apenas a sorte, e sei que se eu for embora, esta Remington ficará petrificada sobre a mesa com esses ar de duplamente quietas que as coisas móveis têm quando não se movem.

Levantei a câmara, fingi estudar um enquadramento que não os incluía, e fiquei na espreita, certo de que enfim os apanharia no gesto revelador, a expressão que resume a tudo, a vida que o movimento mede com um compasso mas que uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhemos a imperceptível fração essencial.

Contexto social e histórico do tema referido no texto lido:
Embora não explícitos, o contexto sócio-cultural e histórico nos quais se processam o conto podem ser depreendidos a partir da relação de significado estabelecida por alguns elementos textuais, como a máquina de escrever, que situa os acontecimentos narrados num período anterior à popularização dos computadores, inserindo o conto num contexto que antecede a tecnocracia de nossos dias, e sugere uma espécie de relação com a escrita diferente da que vivenciamos em nossa época.
Além disso, o conto “As babas do diabo”, sobretudo, carrega noções morais e sociais não só presentes como constantes em nossa sociedade, a saber, o que se observa nas ações e reações do fotógrafo diante da cena intimista protagonizada por um colegial e uma jovem mulher.

Situar a obra ou o texto lido entre outras produções do mesmo autor:  Famoso por seus contos, nos quais o real é simulado a partir de elementos do universo fantástico, Julio Cortázar possui uma bibliografia abundante que incluí títulos como o celebrado romance Jogo de Amarelinha, construído para uma leitura interativa, História de Cronópios e fantamas e a coletânea Bestiario.

O autor e seus contemporâneos:
O Realismo fantástico marcou a Literatura do séc. XX na América Latina. Dentre os escritores que partilham dessa vertente com Cortázar estão García Márquez, Vargas Llosa Alejo Carpentier e Roberto Bolaño.